sexta-feira, 30 de março de 2012

"De manhã cedo o carro segue em direcção a Lisboa na companhia do mar. O sol baixo encadeia, e por instantes fecho os olhos e deixo-me levar pela tua imagem embalado na doce memória do teu corpo. Sou marinheiro em caravela e o oceano a meu lado. A maré sabe e enche-me de ti, dos teus olhos que se fecham em silêncio no momento em que me amas. Não há mais espaço, querida. O meu peito é um casco onde nada mais cabe. Só o coração no porão, lastro que guarda um continente de perfumes exóticos e especiarias, cores e matizes que os homens desde há muito buscam. Por dentro vou repetindo, saboreando as palavras com lentidão gulosa : Navego à bolina do teu vento (...) Navego à bolina do teu vento , e amo-te de forma imbecil, sem restos de prudência, na inteira certeza de que nesses momentos Deus existe.

A companhia que me fazes, amor, nessa viagem. É possível que enquanto dormes, e te deixo para trás, envolta nos teus sonhos de princípio de manhã, te dê, sem que o saibas, o melhor de mim: restos de amor em estado puro que se salvaram do naufrágio da infância"

Vida em mim
Nuno Lobo Antunes

Há um mês atrás li-te estas palavras. Era sexta-feira e tinha o peito apertado, mas as horas trouxeram as tuas mãos para dentro das minhas. Hoje é sexta feira e só há chuva lá fora e aqui dentro uma velha pulseira vermelha amarrotada que aperto nas minhas mãos vazias e guardo no caderno da taschen que me deste. Há muito que os fins-de-semana perderam a alegria de outrora. E a pulseira está no meio das páginas rabiscadas e não no pulso de onde a arranquei outrora também. Está tudo fora do sítio. O mundo ao contrário, a rotação descompassada. E a companhia na viagem é outra. " Desde que te conheci que nunca mais me senti sozinho", dizias-me. Mas agora...Quanta solidão e perda se pode carregar e sentir no oceano que corre aqui do lado e pelo meio de nós?

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